Evolução do filme publicitário

O Clube de Criação de São Paulo foi fundado com um objetivo, segundo seus sócios-fundadores: criar identidade para a propaganda brasileira. Até a década de 70, a propaganda brasileira era basicamente um repertório de referências. Primeiro foram os poetas, escritores, jornalistas, músicos, gente das letras, que levaram para a criação publicitária referências artísticas. Eram famosos os comerciais baseados em músicas, versos, estrofes, recheados de textos pretensamente literários. Até que surgiu a geração de publicitários influenciados pela propaganda americana e inglesa, os grandes mercados criativos mundiais. Através do intercâmbio, eles buscavam referências em anuários, filmes publicitários, no cinema. Mas faltava a tão propalada identidade brasileira na propaganda que, a bem da verdade, na década de 70 não fazia falta em nenhum setor da vida cultural brasileira. Eram os tempos do regime militar, da censura, tempos em que ninguém tinha o direito de se expressar sem pedir licença. A propaganda, inclusive.

Foi por essa busca que os publicitários da geração de Washington Olivetto lutaram ao fundar o Clube de Criação de São Paulo. A ideia era reunir, em anuário, as propagandas mais criativas da propaganda brasileira. Criatividade aí contava originalidade, ou seja, nada de referências, de cópias, era hora da criatividade brasileira na propaganda tomar seu lugar de direito.

Nos primeiros anos do anuário, uma série de tipos bem brasileiros começou a aparecer nos intervalos dos programas de televisão. Gente que falava muito e de um jeito bem coloquial. O caipira sentado na porta de sua casa ou em uma cerca de fazenda, a madame na cozinha de sua casa, um casal de velhinhos na hora de dormir, um casal de classe média discutindo a separação, funcionários em reuniões de trabalho. O brasileiro típico começa a se ver retratado em comerciais de TV, na maioria das vezes explorando o lado lúdico, bem-humorado ou bastante estereotipado. O estilo dos filmes não mudava muito: na maioria das produções os atores interpretavam em frente às câmeras. A prática economizava em cenários e locações para investir em bons atores, bons textos, bons diálogos. Características que vão se manter na propaganda brasileira permanentemente.

Essa tendência encontrou sua forma definitiva em um personagem antológico, criado pela dupla Washington Olivetto e Francesc Petiti, da DPZ: o garoto Bombril, interpretado por Carlos Moreno. Foram centenas de comerciais sempre na mesma linha criativa. O ator interpretando em cenário limpo, com alguns poucos produtos à frente, abordando temas do momento em paródias ou citações. Até o final da década de 80, a propaganda brasileira de TV segue nessa linha, sem muitas variações.

Em 1989, o mesmo Washington Olivetto é responsável por comercial marcante, quase um divisor, em estilo criativo: a campanha Primeiro Sutiã da Valisère. Filme totalmente imagético, sem textos ou diálogos, o conceito traduzido em imagens, gestos, expressões, música, encontros. A linguagem visual do cinema na propaganda de TV brasileira. É claro que outros filmes já haviam sinalizado para essa tendência durante a década de 80., mas o filme da Valisère marca pela ideia, pela originalidade associada a uma produção, direção e elenco impecáveis.

Do mesmo período, destaca-se o filme Hitler, de Nizan Guanaes, criado para a Folha de São Paulo. É o exemplo incontestável do uso da linguagem publicitária: imagem e texto em harmonia, revelando conceitos que dependem da participação plena do espectador inteligente e perspicaz.

Primeiro Sutiã e Hitler, dois dos filmes mais premiados da propaganda brasileira, que entra nos anos 90 buscando nova identidade. A tendência permanece no uso de tipos e linguajar bem brasileiro. No Brasil se fala muito, se expressa muito, se gesticula muito. Tudo é oral. Dificilmente os redatores e diretores de arte abandonam essa linha. O processo de identificação com o espectador é muito mais simples quando se fala a linguagem que ele entende.

Ao mesmo tempo, os filmes visuais vão ganhando espaço. É tempo de mostrar a beleza da natureza, das pessoas, do clima, tudo elevado em produções bem cuidadas. A referência é o estilo Rede Globo de fazer TV: imagens limpas, esteticamente sedutoras, personagens bonitos, quase eróticos.

A partir dessa tendência, a propaganda brasileira de TV passa a concorrer em maior escala em festivais internacionais de propaganda. Com o filme Formiguinhas, da Philco, criado por Fábio Fernandes, o Brasil disputa pela primeira vez o Grand Prix de Cannes, prêmio mais concorrido do mais badalado festival de criação publicitária do mundo.

Discute-se agora o futuro da propaganda de televisão, não só no Brasil, mas no mundo. A TV Digital, YouTube, Internet, dispositivos móveis, são os caminhos. Mas como diria o personagem Pathol, no final do filme Irma La Douce, de Billy Wilder, isso é uma outra história.

Redator x diretor: combate sem tréguas

A denominação é expressiva: diretor de cinema. Quando o redator entra em reunião de pré-produção para discutir o roteiro do comercial, que em alguns casos mais parece uma sinopse, espera várias coisas do diretor de cinema: definição de planos e movimentos de câmera, soluções criativas de edição, boa direção de atores, determinar o tempo exato de cada cena para a história ser contada em tempo curtíssimo, criar os efeitos sonoros que o redator não consegue explicar direito no roteiro. Mas o diretor sempre tem ideias a acrescentar ao roteiro.

As ideias podem ser bem-vindas e ajudar cenas que ficaram mal-resolvidas ou podem, no final das contas, transformar o comercial em um filme do diretor. Na propaganda brasileira, há uma história emblemática que ilustra essa difícil relação entre criação e diretor de cinema. Relação muitas vezes alimentada por egos.

Em 1988, a W/GGK (a W/Brasil de Washington Olivetto) criou e produziu o famoso e premiado filme “Hitler” para a Folha de S. Paulo. Em linhas gerais, o roteiro original de Nizan Guanaes descrevia:

“Uma mão invisível iria riscando os primeiros traços numa tela de vidro. O espectador não veria a mão, só o que ela desenhava. A um dado momento perceberia no desenho um rosto de homem, ainda não identificável. À medida que os traços ganhassem forma, uma voz em off diria frases como ‘este homem salvou seu país, deu emprego para milhões de seus compatriotas’, num rol de virtudes que só se encerraria quando o espectador percebesse de quem era o rosto do desenho: Adolf Hitler.”

Gabriel Zellmeister, diretor de criação da agência, não gostou muito da mão invisível e pediu outra solução ao diretor do filme, Andrés Bukowinski. O diretor propôs trocar a mão invisível por outro recurso:

“À medida que a locução avançasse, a câmera iria recuando vagarosamente e permitindo que o espectador percebesse que se tratasse de uma retícula, o minúsculo pontilhado de que se compõe uma foto de jornal. O recuo da câmera seria articulado com a leitura do texto, para coincidir o fim das ‘realizações’ com a identificação do rosto de Hitler.”

Esta história está no livro sobre a W/Brasil, Na toca dos leões, escrito por Fernando Morais. Segundo o autor, “Nizan esperneou, disse que não, que a ideia original era dele e tinha que ser respeitada. Para ele, o papel de Bukowinski era dirigir um roteiro que estava pronto, e não criar outro. Foi preciso que Washington e Gabriel interviessem – para desolação de Nizan, a favor da versão de Bukowinski.”

O filme demonstra que prevaleceu a ideia do diretor: um pequeno ponto preto aparece na TV, à medida que a câmera se afasta aparecem centenas de outros pontos pretos até formarem a imagem da fotografia de Hitler. Uma fotografia de jornal. Enquanto a câmera recua, o espectador ouve o famoso texto de Nizan Guanaes: “este homem pegou uma nação destruída. Recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo…”

A polêmica mostra que existem filosofias de trabalhos distintas entre profissionais de criação para escrever roteiros. Alguns redatores dão mais liberdade ao diretor de cinema para improvisar em cima do roteiro. Outros não. Quando montou sua própria agência, a DM9, Nizan Guanaes difundiu entre seus redatores: os roteiros devem conter todos os planos, movimentos de câmera, soluções visuais, devem ser decupados, cada cena contada em detalhes. O diretor não pode interferir no roteiro. Deve simplesmente filmá-lo.

A maioria das agências de propaganda prefere trabalhar com roteiro simplificado, no qual se conta basicamente a história. Nesse caso, o diretor tem participação mais efetiva, pois é responsável pela escolha da linguagem de cinema.

Posições diferentes, métodos de trabalho diferentes que levam criativos ao dilema quando se deparam com novas ideias em cima de seu roteiro: até que ponto o diretor pode interferir?

Referência: Na toca dos leões. Fernando Morais. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005

A estratégia transmídia no cinema e na TV

No início deste século, o roteirista e produtor Mark Warshaw criou diversos produtos paralelos para a mídia de entretenimento baseados em duas séries de TV. Ele trabalhou em Smallville e depois participou de Heroes, criando filmes para celular, videogames, quis, chats, comunidades virtuais, histórias em quadrinhos e outros subprodutos. A estratégia, denominada transmídia, tem como alvo específico os fãs das séries que movimentam comunidades na internet.

O conceito não é novidade no cinema e na TV. Desde o lançamento de Star Wars, em  1977, a saga de George Lucas é adaptada para quadrinhos, séries animadas, livros, documentários, games, histórias imaginadas a partir de lapsos dos filmes, como as guerras clônicas.

A estratégia é aplicada há mais tempo e encontra exemplos em filmes de sucesso. Em 1900, o escritor Lyman Frank Baum lançou O Maravilhoso mágico de Oz. Motivado pelo sucesso, o autor escreveu livros baseados nos personagens principais que passaram para o rádio, para o cinema mudo, para o teatro. Em 1939, Victor Fleming adaptou o texto e dirigiu um dos mais consagrados filmes de todos os tempos, O mágico de oz, com Judy Garland. As referências passaram então a ser o filme da MGM que motivou cartuns, desenhos animados, musicais da Broadway, peças teatrais, espetáculos de dança no gelo.

O filme é também dos primeiros exemplos de licenciamento de produtos, movimentando indústria de bonecos, jogos e réplicas de situações, cenários e figurinos. O famoso sapatinho vermelho de rubis de Dorothy é ícone cultural imitado por estilistas. 

Outro exemplo vem de James Bond, o mais famoso agente secreto. Os filmes nasceram a partir dos livros de Ian Fleming, escritos entre 1953 e 1966. James Bond é uma franquia e já rendeu quase cinquenta livros sem autoria de Ian Fleming, além de novelas, quadrinhos, programas de rádio e televisão, filmes animados, games, biografia do agente secreto, um James Bond feito em Bollywood e outro asiático.

É também na década de 60 que nasce Star Trek, marca cult do universo televisivo.  A série com Spock, McCoy e Capitão Kirk estreou em 1966 na TV americana e foi exibida durante três temporadas.

Enquanto estava no ar, Jornada nas Estrelas criou legião de fãs, conhecidos como trekkers. A segunda temporada só foi ao ar devido a milhares de cartas de espectadores dos Estados Unidos que foram enviadas à emissora pedindo para não cancelarem a série. Mas nem os trekkers conseguiram impedir o fim após a terceira temporada, ao completar 79 episódios.

No início da década de 70, Star Trek passou a ser reprisada. Paralelamente, os trekkers promoveram convenções com a participação dos atores, criando esse tipo de comunidade comum hoje na internet.

Começaram então as adaptações de Star Trek. Em 1973, foi produzida e exibida na televisão Jornada nas estrelas – a série animada. Em 1979, estreou o primeiro longa-metragem para cinema com os atores da série original. Até agora são seis filmes com a equipe do Capitão Kirk e quatro comandados pelo Capitão Picard, de A nova geração. J. J. Abrams dirigiu mais três longas nos últimos anos, revitalizando a franquia no cinema.

Nos anos 80, começam as revisões de Jornada nas Estrelas para a TV. Star Trek – a nova geração, sete temporadas, 1987 a 1993. Deep space nine, sete temporadas, 1993 a 1999. Voyager, sete temporadas. 1995 a 2001. Enterprise, quatro temporadas, 2001 a 2005. Agora é a vez do streaming: Discovery, produção da Netflix, está na segunda temporada. A Amazon lançou a primeira temporada de Star Trek: Picard.

Para as outras mídias, iniciativas inusitadas como  o dicionário klingon. Foram lançados livros no estilo pulp-fiction aproveitando um conceito que nunca foi desenvolvido durante as séries. Em famoso episódio, o capitão Kirk encontra Khan, espécie de super-homem congelado no espaço. Ele é fruto de experiência genética e tentou, ao lado de outros predestinados, dominar a terra, provocando as guerras eugênicas. A partir desta história, citada em apenas um episódio da TV, livros narraram as guerras eugênicas.

Star trek, James Bond e O mágico de Oz são exemplos da origem do conceito transmídia. Todos se apropriaram das mídias, em variados formatos, para estabelecer contato permanente com o público, com os fãs. A internet criou possibilidades imediatas para a disseminação deste trabalho, principalmente em quesitos como velocidade de propagação, descobertas, interação com o público. Representa, talvez, a famosa epígrafe do ícone cultural intitulado Star Trek: “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.