Cinema: arte ou comunicação

A conclusão de Jacques Aumont, no final do livro As teorias dos cineastas, é uma dúvida:

“Resta-me fazer uma confissão: não tenho, afinal, muita certeza de que o cinema seja uma arte. Ele se preocupou demais em provar que ia se tornar uma arte, e talvez tenha sido arte em certas ocasiões.”

Quando penso em filmes como Não amarás (Krótki film o milosci, Polônia, 1988), de Krzysztof Kieslowski, fico com a certeza que o cinema é uma arte. Não Amarás exemplifica o que considero essencial para definir arte no cinema. Através da linguagem do cinema, o artista, no caso o diretor do filme, expressa  o que tem de mais íntimo, poético e bonito. Ao mesmo tempo, a expressão do cineasta passa por uma leitura também íntima, poética e bonita do espectador. Cinema e espectador se misturam em um jogo de narrativas, emoções, compartilhamento. Conversam através de uma linguagem própria. Após uma sessão de Não Amarás tenho sempre a certeza que participei de experiência poética e artística.

É claro que o cinema, como qualquer outro produto cultural, sofre com a banalização da arte. Nas palavras de Aumont, “A arte se tornou uma coisa comum, porque todos são artistas, pelo menos potencialmente, e que qualquer prática reivindica para si (por uma preocupação afinal econômica) um pertencer à arte.”

Nem todo filme é cinema, como nem todo livro é literatura. Tenho especial predileção por filmes de ação, mas não posso considerar Duro de matar (Die hard, EUA, 1988) como arte. E olha que estou falando de um dos meus filmes preferidos do gênero, sabendo ainda que Duro de matar é considerado pela crítica como filme que mudou os rumos do cinema de ação.

Não vou entrar em discussões filosóficas ou estéticas sobre o sentido da arte, principalmente por desconhecimento de causa. No entanto, sou contraditório, pois minha percepção de arte no cinema é também um diálogo entre cineasta e espectador. O espectador (eu) se identifica com Duro de matar, portanto estamos diante também de uma obra de arte?

Polêmicas e dúvidas. Este texto começou com uma dúvida de Jacques Aumont. Sei apenas que filmes como Duro de matar, Indiana Jones, Star Wars, Jornada nas Estrelas, me levam a um mundo desconhecido de aventura, ficção, viagens, puro escapismo.

Não amarás me leva a um mundo talvez ainda mais desconhecido: as sensações e sentimentos que habitam dentro de mim e se revelam em cenas como a do jovem Tomek observando clandestinamente sua amada Magda.

Rainer Werner Fassbinder (1945/1982) foi o diretor mais atuante do chamado novo cinema alemão, na década de 70. Começou a trabalhar em 1969 e, em 13 anos de carreira, dirigiu 43 filmes. O diretor morreu em 1982, com 37 anos, vítima de overdose. Os melhores filmes a que assisti de Fassbinder são: As lágrimas amargas de Petra Von Kant (1972), O casamento de Maria Braun (1978), Lili Marlene (1980), Lola (1981), O desespero de Veronika Voss (1981) e a série Berlin Alexanderplatz (1980).

Jacques Aumont analisa o discurso teórico de alguns grandes diretores do cinema que, paralelo às produções, escreveram sobre cinema: Eisenstein, Tarkovski, Pasolini, Rohmer, Fassbinder. Destaco algumas passagens do livro referentes ao pensamento de  Rainer Werner Fassbinder, ainda pensando na relação entre cinema e arte.

“Para Fassbinder, autor de roteiros e peças marcadamente ficcionais, a questão do espectador é primeiro levantada por meio de sua relação com a ficção: deve-se dar-lhe, ao mesmo tempo, dialeticamente, material para identificação (com os personagens) e os meios de distanciamento.”

Nesse sentido, pode-se analisar porque Fassbinder é rotulado como autor de melodramas: buscava identificação com o espectador. Em Lili Marlene, por exemplo, Fassbinder abusa da bela canção-tema em diversas sequências do filme. Uma das principais características do melodrama é o uso da música como pontuação em situações dramáticas. Uma frase de Fassbinder mostra sua concepção de cinema: “E todos choramos na sala. Porque é tão difícil mudar o mundo.” (comentário sobre os filmes de Douglas Sirk, um dos mestres do melodrama). Volto à análise de Jacques Aumont:

“Os filmes liberam a cabeça: trata-se não apenas de produzir um distanciamento, mas de deixar uma possibilidade real de liberdade ao espectador, reservar-lhe um lugar do qual possa fazer e imaginar tudo o que o filme não pode programar. O espectador de Fassbinder é cativado pela história, simpatiza com os personagens – mas para conservar melhor, afinal, a liberdade essencial de adaptar o filme à sua própria vida.”

Estamos, de novo, na discussão da necessidade de identificação do espectador para participar de uma obra de arte. Lembro-me da sensação de profunda irritação ao assistir A última tempestade (Prospero’s books, Inglaterra, 1991), de Peter Greenaway. O filme não me disse nada a não ser uma profusão de recursos pictóricos, imagens, cores, extraídas da relação entre Greenaway e a pintura. No entanto, Luchino Visconti, que sempre usou em seus filmes referências também da pintura, é um de meus diretores favoritos (se não for o favorito). A diferença está na concepção dramática dos filmes. Na sensibilidade do artista em atingir o espectador e buscar seu compartilhamento. Visconti me diz muito, enquanto alguns artistas, como Peter Greenaway, fazem arte ou cinema para si mesmo. Mas tenho amigos publicitários,  diretores de arte, que “idolatram” os filmes de Peter Greenaway.

Uma lógica para isso tudo? Creio que não: se o cinema é arte, como acredito, então o espectador tem liberdade diante dela. Por isso os textos de Jacques Aumont sobre Fassbinder chamaram tanto a minha atenção.

“O espectador é convidado a compreender essa posição (do cineasta) e, baseado em sua própria experiência – que pode ser diferente da experiência do cineasta, contanto que haja um mínimo de pontos em comum -, a compartilhá-la.”

Continuo a reflexão sobre cinema como arte. Syd Field defende no célebre livro Manual do roteiro uma ideia do cineasta Jean Renoir: a de que o cinema é muito mais um meio de comunicação do que arte.

“Ele (Jean Renoir) adorava falar, e nós adorávamos escutá-lo por horas a fio, sobre o relacionamento entre arte e filme. Por causa de seus antecedentes e tradições, Renoir achava que o cinema ainda que uma grande arte, não era uma arte ‘verdadeira’ no sentido que o são a literatura, a pintura ou a música, porque muita gente está envolvido em sua execução. O cineasta pode escrever, produzir e dirigir seu próprio filme, Renoir costumava dizer, mas não pode representar todos os papéis; pode ser o cinegrafista (Renoir adorava pintar com a iluminação), mas não pode revelar o filme. Tem que mandá-lo para um laboratório especializado e às vezes ele não retorna do jeito que queria. ‘Uma única pessoa não pode fazer tudo’, Renoir costumava dizer. ‘A verdadeira arte está em fazê-la inteira.’

“Renoir estava certo. O cinema é um meio de comunicação que depende da colaboração. O cineasta depende de outros para levar sua visão para a tela. As habilidades técnicas requeridas para fazer um filme são extremamente especializadas. E os padrões da arte estão constantemente evoluindo.”

Concordo com Syd Field que o cinema é um meio de comunicação. E sempre que reflito sobre a questão do cinema como arte, penso no mais absoluto fascínio e paixão que sinto pelo cinema, penso que só determinados filmes (e livros) conseguem me deixar em estado do mais puro devaneio, seduzido por imagens que tomam conta dos sentidos como se vivessem em mim. Só a arte verdadeira pode levar a isto, a sétima arte.

Referências:

As teorias dos cineastas. Jacques Aumont. Campinas: Papirus, 2004

Manual do roteiro. Syd Field. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001

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